segunda-feira, 6 de abril de 2015

Da travessia do grande sertão (o destino de Riobaldo)



Fernando Pessoa (1)






O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é pensar, a partir de uma interpretação do sentido de sertão em Grande sertão: veredas (GSV), o nexo fundamental, a conexão original que João Guimarães Rosa (JGR) indicou haver entre grande sertão e travessia – este texto propõe mostrar, com o exemplo do destino de Riobaldo, como a travessia corresponde ao modo mais apropriado de se viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o destino do homem jogado na vida, sua liberdade.






Da travessia do grande sertão (o destino de Riobaldo)

Fernando Pessoa (1)


Ao mestre Gilvan Fogel, com carinho


Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.

João Guimarães Rosa


I. Da travessia do grande sertão

O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é pensar, a partir de uma interpretação do sentido de sertão em Grande sertão: veredas (GSV), o nexo fundamental, a conexão original que João Guimarães Rosa (JGR) indicou haver entre grande sertão e travessia – este texto propõe mostrar, com o exemplo do destino de Riobaldo, como a travessia corresponde ao modo mais apropriado de se viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o destino do homem jogado na vida, sua liberdade.
Como todos os temas, símbolos e imagens de JGR, devemos compreender a travessia em GSV na unidade de suas dimensões histórica e metafísica. Por um lado, essa palavra indica as andanças dos sertanejos, as travessias que Riobaldo fez, ainda menino, do São Francisco e, já chefe dos jagunços, do Liso do Sussuarão; por outro lado, travessia indica também o modo de ser no mundo, como o real se apresenta, se realiza: Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.[1] Por este seu aspecto metafísico, a obra GSV começa nonada e finda na travessia, indicando que o sertão se funda, tem seu princípio e origem, no nada e acaba, tem sua finalidade e meta, na travessia. Esse começo e fim, antes de serem apenas o início e o término de algo, indicam a vigência do que transcende, daquilo que, por se fundar no nada, obtém o seu solo na ultrapassagem de qualquer determinação. A travessia constitui a dinâmica mais própria do sertão, a sua essencialização originária, transcendência, liberdade; travessia significa a liberdade de ser fundamento originário de si mesmo.
Toda travessia se compõe de três características fundamentais e indiscerníveis: o ultrapassar, o perpassar e o destinar. O ultrapassar caracteriza a travessia como transcendência, o fato de ela, por se fundar no nada, estar sempre jogada em seu acontecimento, no dar-se existencial de si mesma. A travessia se constitui na permanência da ultrapassagem, no surgir do aparecer, vigência originária de ser. O perpassar corresponde à entrega a essa ultrapassagem, daquele que se doa inteiro à presença de seu acontecimento. O perpassamento da ultrapassagem perfaz a sua própria completude no deixar ser apropriado da conjuntura; a ultrapassagem é perfeita pelo perpassar de nossa presença. Ao perpassar a sua própria ultrapassagem, a travessia ganha destino, o sentido que alinhava o foi com o será e, assim, costura a estória compondo o seu enredo. Como ultrapassar, perpassar e destinar, a travessia constitui o modo de ser do sertão, da vida como tarefa de auto-constituição de si, o viver como aprender a viver.
E o sertão? Tal como travessia, o sertão em GSV também precisa ser compreendido na unidade de suas duas dimensões, a geográfica e a metafísica. Sertão indica o interior do Brasil, o seu cerne mais íntimo, suas minas. O sertão é as Minas Gerais; ou melhor: o sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga. (458). Por outro lado, o sertão está em toda parte (8), ele é do tamanho do mundo (68); ou melhor: o sertão é sem lugar (331), ele é o sozinho, dentro da gente (289). Por este aspecto metafísico do sertão, JGR afirma, em sua entrevista a Günter Lorenz, intitulada Diálogo com Guimarães Rosa, que: “Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac.”[2] Esses escritores nasceram no sertão não por provirem histórica ou geograficamente do interior do Brasil, mas pela dimensão metafísica de suas escritas, de suas relações com a linguagem. “Portanto torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde Inneres und Ausseres sind nicht mehr zu trennen.” (DGR, 50)
O sertão é o lugar da solidão onde, conforme citação feita por Guimarães Rosa da obra Divã oriental-ocidental de Goethe, “o interior e o exterior já não podem ser separados”: no sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou o tu, ele está ainda além do céu e do inferno (DGR, 50) – jenseits Von Gut und Bösel[3]. Esta condição ocorre pelo estado de inocência do homem do sertão, que, por não ter comido da árvore do conhecimento, não possui a culpa do pecado original. Sem ter culpa da vida, não há para esse homem uma lei moral que, acima de tudo e de todos, prescreva de antemão o que o ele deve ou não fazer; a sua ação é decidida na própria conjuntura, é conhecida na descoberta do que, nela, aparece como o mais apropriado. O jagunço é o sertão (200) porque ele vive jogado na travessia. Por isso, solidão – a condição de ser um eu que ainda não encontrou o outro, ou melhor, que ainda não se perdeu na alteridade. Solidão deve ser aqui distinguida do isolamento, pois enquanto esse diz separação, confinamento, exílio, aquela indica auto-consistência, a propriedade do homem que se realiza por si mesmo e para si mesmo e não por outro e para outro. Solidão indica a assunção do que é mais apropriado, a liberdade de decidir e consumar o seu próprio destino.
“A gente do sertão, os homens de meus livros, vivem sem consciência do pecado original; portanto não sabem o que é o bem e o que é o mal.” (DGR, 58) Como o sertanejo ainda não conheceu a culpa do pecado e, assim, não prescreveu uma lei soberana que determina universalmente o que é o bem e o mal, o seu eu se constitui jogado na junção de sua conjuntura, na travessia de seu acontecimento. Antes do confinamento do eu no sujeito, o isolamento do homem na autonomia de sua consciência, o sertanejo se encontra jogado no mundo, jagunço no sertão, tendo sempre que descobrir o que ele é, encontrar o sentido de seu destino, no próprio acontecimento existencial. Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque apreender-a-viver é que é o viver mesmo. (546).
Apreender a viver é conhecer, nascer com, junto ao que acontece, articulando o sentido do mundo a partir da junção de cada conjuntura, do nexo que se evidencia na conjunção do acontecimento. Ao contrário da adoção de leis prévias, de ser legislado por regras morais ou lógicas, o homem do sertão é legislador, ele descobre a medida das coisas para além do bem e do mal, aprende o sentido do que aparece (é) no próprio aparecimento (ser). Essa medida consiste na necessidade do que se mostra como mais apropriado, autêntico; o sentido que revela propriedade e autenticidade, nexo, verdade, liberdade e destino. O verdadeiro sentido aparece como a propriedade do que é preciso, do que, na travessia do grande sertão, é descoberto como possibilidade necessária de ser. O sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. (146)
Por não ter uma determinação prévia, o sertão é grande ocultado demais, ele é o que precisa ser, constantemente, descoberto: Sertão – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem. (356) – o sertão ensina que o real só se dispõe para a gente, de repente, no meio da travessia. Como o que só se compreende na ultrapassagem, não se pode querer entender o que é o sertão, o real, através da determinação de algum conceito, seja ele lógico, estético ou moral. Conhecer o sertão não é dominá-lo com um entendimento qualquer, mas consiste na graça de, descobrindo o que se oculta, compreender o que se revela como mistério. Não podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser vero bom jagunço. (533)
O grande sertão impõe um pensamento que, ao contrário de buscar determinar o que é pensado com a certeza de um juízo, encontra a travessia que, na conjuntura, se mostra como necessária, perfeita. O grande do grande sertão consiste nesse perfazimento de sua travessia, no ser tomado, atravessado, pelo mistério do sertão. Por só aparecer se ocultando, o sertão precisa ser experimentado – e experiência, emperia, Erfahren, é travessia, atravessamento. Não há um acesso linear, de fora para dentro, crescente e gradativo para se entrar o sertão – ele não tem janelas nem portas (462). Para se entrar no sertão é necessário, de repente, saltar para dentro do instante que já se está, se integrar no interesse de sua conjuntura. Só já desde dentro é que se pode entrar no sertão, se despertar para ele, apropriá-lo.
Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça pintada. É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar a mão curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem muito medo natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e esse homem afia a sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça, com muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O senhor não é um bom entendedor? (102)

Riobaldo, a fim de indicar os ocultos caminhos da vida, conta o exemplo de como o homem precisa se apropriar de sua coragem através da experiência de um acontecimento que abre, inaugura, desperta o que ele é. É preciso já ter coragem para tornar-se corajoso. Esta dinâmica circular de vir a ser o que já se é constitui o acontecimento apropriante de um instante extraordinário, o súbito abrir-se do destino, tempo da travessia – Aquela travessia durou só um instantezinho enorme (367).
Quanto tempo dura um instante? Ao contrário do agora, que, por ser concebido por um tempo repartido em passado, presente e futuro, vem e passa, o instante constitui o acontecimento no qual o tempo, voltando-se para si mesmo, se concentra na reunião circular da simultaneidade de seu princípio com o seu fim. O instante é a unidade da totalidade temporal; o acontecimento em que o tempo é todo tempo o tempo todo: comigo as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre­ (94) – um tempo no qual não há antes ou depois, menos ou mais, nascimento ou morte: o instante é a eternidade que perfaz a travessia do grande sertão, a origem do tempo, fundamento do destino. O sertão é sem tempo, travessia de um instantezinho enorme.

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O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é mostrar o nexo fundamental, a conexão original que JGR indicou haver entre grande sertão e travessia – pensar como a travessia corresponde ao modo mais apropriado de se viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o destino do homem jogado na vida. A fim de prosseguir essa análise, encaminhando o texto ao retorno de seu propósito original, podemos conferir este nexo entre grande sertão e travessia no exemplo que dele oferece a estória de Riobaldo, o destino que o conduziu a tornar-se chefe dos jagunços, e matar o Hermógenes: E o “Urutu-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse... Tristonho levado que foi – que era um pobre menino do destino... (17)





II. O destino de Riobaldo como travessia do grande sertão

Eu não era o do certo: eu era o da sina!

Grande sertão:veredas narra a saga de Riobaldo, conta o périplo de sua travessia, a fim de pensar o destino de sua vida. Após cumprir as tarefas de ser chefe dos jagunços, Riobaldo, seja de range rede ou assentado em sua cadeira grandalhona da Cariranha, tomou gosto de especular idéias e passou a narrar as venturas de suas andanças pelo sertão. Como nessa narrativa ele conta a sua vida não apenas para relatar o ocorrido, mas principalmente refletir sobre o vivido, a sua estória não é linear, apenas informativa – contar seguido, alinhavando, só mesmo sendo as coisas de rasa importância (68) –, mas interpretativa, especulativa, uma narração hermenêutica, que vai e volta buscando compreender os desígnios do sertão, o sentido de sua travessia – Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (68) Matéria vertente é aquela que extravasa, transborda, escorre, escoa, mas também a que retorna, retoma, volta, verte à origem – tal como canta a canção de Siruiz:
Olererê, Baiana,
eu ia e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, oh Baiana,
e volto do meio pra trás...

Já com a estória bastante avançada, Riobaldo volta ao início e conta como tudo começou: Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão. (69) Um fato que, um dia, se deu, se abriu, indica o acontecimento inesperado, súbito, de um instante extraordinário. Por ser inesperado, este fato não foi planejado por nenhuma antecipação, ele caracteriza um acontecimento que surpreende; e surpreender é pegar em flagrante, improvisar repentinamente uma ação. Esse repentino compõe a estrutura do instante, a subitaneidade desse acontecimento extraordinário. O extraordinário corresponde ao espanto que, abalando as referências ordinárias do cotidiano, transforma as compreensões habituais que temos de nós mesmos, dos outros e do mundo – de tudo. Todo súbito acontecimento de um fato extraordinário inaugura algo novo, constitui uma abertura original; por isso Riobaldo diz que este fato foi o primeiro. O primeiro, aqui, não é aquele que ocupa o lugar inicial numa seqüência linear, quantitativa e progressiva, mas o que tem primazia, é fundamental e elementar, origem que abre e perfaz o aberto. Um fato primeiro é aquele que, deflagrando uma necessidade, demanda travessia, instaura destino: Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia da minha vida. (186)
Riobaldo conta que esse fato fundamental de sua vida ocorreu na travessia do São Francisco, que ele e o menino fizeram ainda jovens. Com quatorze anos, Riobaldo foi com a sua mãe ao porto do Rio-de-Janeiro pedir esmola para pagar uma promessa que o curou de grave doença. No terceiro ou quarto dia, de repente, viu um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro, com chapéu de couro, rindo e olhando para ele. Aproximou-se, conversaram e, cheios de simpatias, ficaram amigos:
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. (70)

Riobaldo sente um diferente prazer com o menino desconhecido, o desejo de uma grande simpatia. Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo. (70) Irmanados no interesse dessa inesperada amizade, foram passear de canoa pelo de-Janeiro, rio de águas claras que, meia légua abaixo, desemboca no São Francisco – A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-Janeiro, quase só um rego verde só. (71) Riobaldo, que não sabia nadar, sentou na canoa como pinto em ovo, e, inseguro com aquela situação, com medo e vergonha, resolveu ter brio e manter a calma.
Canoando pelas águas claras do de-Janeiro, o menino começou a mostrar para Riobaldo os bichos cágados em cima da pedra, ou nadando no rio:
E chamou a minha atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores...” – ele prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo. Um pássaro cantou. Nhambu? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? (71)

No passeio no de-Janeiro, o menino mostra a Riobaldo a epifania do mundo. Entregue à graça da amizade, impressionado com a força singela desse menino, Riobaldo, completamente perpassado pelo seu acontecimento, experimenta um instante extraordinário, daqueles que nunca mais se esquece. A canoa logo chega ao São Francisco e, para Riobaldo, Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. (71) Assim, primeiro ele pediu para dali voltar e depois, quando o menino e o canoeiro levantaram e a canoa balançou, deu um grito: Eu disse um grito. – “Tem nada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então, fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem vexame:  – “Atravessa!” O canoeiro obedeceu. (72)
Essa travessia do São Francisco foi um acontecimento fundamental na vida de Riobaldo, algo que transformou todo o seu ser: O São Francisco partiu minha vida em duas partes. (199) Ele conta que teve medo. Achava que o rio queria naufragar, mastigar e engolir tudo que encontrasse, a aguagem bruta, traiçoeira. O medo se tornou ainda maior quando, no meio da travessia, desfez a sua última segurança ao descobrir que, se virasse, aquela canoa não boiava: “Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d’óleo não sobrenadam...” – disse o canoeiro. A sensação de completa ausência de controle, segurança nenhuma, chegou a dar uma tontura em Riobaldo – mas eu devo de ter arregalado doidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” ele me disse. (72) E esse conselho foi um presente definitivo na vida de Riobaldo – o presente (doréomai) divino (teo) de Diadorim (Teo-dorina). No completo abandono em que se encontrava, disposto na angústia de não contar com mais nada seguro, Riobaldo, ao ouvir Diadorim falar da coragem, acorda para a necessidade de assumir o seu poder ser e, perfazendo súbita transformação, experimenta o despertar de sua aurora:
O chapéu de couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para a sua coragem. Mas eu agüentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha. ... Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse. Amanheci a minha aurora. (73)

Por sustentar o olhar cheio de dureza do menino, Riobaldo descobre a sua própria coragem e dela se apropria. Então o menino o reconhece como um igual: você também é animoso... Essa descoberta e apropriação da coragem faz Riobaldo tornar-se quem ele é, desperta a sua aurora. Esse amanhecer corresponde à abertura de um destino, um fato que se dá, um dia se abre – o primeiro!! Riobaldo conta essa estória da travessia do São Francisco a fim de mostrar como a sua vida de jagunço começou. O acontecimento primeiro, o instante extraordinário que transformou toda a sua vida, foi o aparecimento da coragem; ela é o fundamento do destino de Riobaldo, a origem, começo e comando, princípio e fim da travessia do grande sertão. Ao término desse relato do que amanheceu a sua aurora, ele diz: Eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute mais do que estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. (74)
Precisamos escutar a estória de Riobaldo com os ouvidos para ouvir mais do que ele diz, com uma escuta desarmada, inocente, tão completamente doada ao que é contado que, por mercê desse interesse, ouve, no que é dito, o que se oculta, o sobredito que falta nome. Esse salto é o que a estória de Riobaldo nos convida a fazer; o seu propósito principal é despertar a compreensão do que se oculta naquilo que a realidade mostra e, assim, ver o invisível mistério do mundo – perceber as suas silenciosas transformações. Ao despertar a sua própria coragem, Riobaldo descobre o seu sentido de ser, transforma toda a sua existência, a compreensão dos entes em seu todo, e ganha a propriedade de seu destino, verdade, liberdade – Soa a Heidegger, não? (DGR, 47)

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O desempenho fundamental, no qual e pelo qual somente nossa presença pode devir essencial, está em despertar a coragem para sermos nós mesmos, para a nossa presença no mundo. A coragem para uma presença própria e originária e seus poderes encobertos é a pressuposição fundamental para obter a essência das coisas. É essa coragem que cria o ânimo, as disposições básicas em que a presença se arroja até e de volta às fronteiras do sendo em seu todo. A essência não vem ao encontro numa inspiração, não se elabora por uma “teoria”, não se apresenta numa doutrina. A essência só se abre à coragem originária da presença para o sendo em seu todo. Por quê? Porque a coragem só se move dirigida para frente; ela se desloca do já dado, aventura-se no risco do extraordinário e cuida do inevitável. A coragem, porém, não é mero desejo contemplativo, ao contrário, a coragem fixa a sua vontade em tarefas simples e claras, força e atrela a si todas as forças, todos os meios, todas as imagens.[4]

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A travessia do São Francisco com o menino despertou a coragem de Riobaldo decidir o seu próprio destino, tornar-se chefe dos jagunços, o Urutu-Branco, e vencer o diabo: Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando o meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio Chico, na canoa afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! (261) Diadorim é o menino que, na travessia do São Francisco, presenteia Riobaldo com o destino de se tornar chefe dos jagunços e matar o Hermógenes: Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda parte? (344) – A modo que o resumo de minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes. (364) Riobaldo amanheceu para o seu destino, quando tinha quatorze anos, na travessia do São Francisco com o amigo Diadorim, ao descobrir a sua própria coragem; o destino de Riobaldo, como travessia do grande sertão, começa com a descoberta da coragem – ela é a condição fundamental de seu desempenho, porque a coragem dispõe o homem no ânimo de perfazer as fronteiras do sendo (ente) em seu todo e, assim, abrir-se à essência das coisas: a coragem ensina ao homem ser na vigência da própria conjuntura e, perpassando a sua ultrapassagem, descobrir o sentido de ser na travessia de seu acontecimento. Que: coragem – é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia – do sertão – a toda travessia. (319)
A coragem é a disposição fundamental de GSV, sua questão central: Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. (69) A coragem é o que promove todo o destino de Riobaldo, ela é a origem de sua travessia do grande sertão: O sério é isto, da estória toda: porque viver é muito perigoso, carece de ter coragem. O perigo da vida consiste em ela não estar nunca pronta, manter-se sempre aberta à possibilidade de ser diante da morte. Por o homem nunca obter uma determinação certa e segura do que ele é, mas sempre existir jogado na possibilidade de sua presença, temos que ser no que estamos sendo, ex-sistir. Essa necessidade é uma possibilidade, um poder ser, uma abertura existencial; nenhum algo, um ente real, apenas a possibilidade de ser que se abre como necessária, como precisando vir a ser, realizar-se. E como No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. (DGR, 8), essa realização de nossa possibilidade existencial é a tarefa que nos foi concedida como liberdade ou miséria: miséria para o alienado de si, cuja vida é um enigma e cruel acaso; liberdade para quem tem a coragem de assumir o seu poder ser, fazendo de todo foi assim, um assim eu quis e hei de querer – apropriando e perfazendo o seu destino no eterno retorno de sua própria auto superação. Assim, com estas transformações de seu espírito, Riobaldo se torna Tatarana e Tatarana, Urutu-Branco e o Urutu-Branco, por fim, criança: Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o Jagunço Riobaldo (345) , um pobre menino do destino...
Riobaldo é o nome de batismo do menino órfão de pai e cuja mãe morreu quando ele tinha quatorze ou quinze anos, pouco depois da travessia que amanheceu a sua aurora; Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte. Amanheci mais. (75) A morte da mãe amanhece mais Riobaldo no sentido de amadurecer e consolidar o que havia se aberto com a travessia do rio: porque somos sempre a nossa possibilidade de ser, viver é muito perigoso, carece de ter coragem. Nonada, travessia. Eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. (132) Completamente entregue a si mesmo, fundado no nada e jogado na travessia, Riobaldo, homem, jagunço, logo se transforma em Tatarana. Tatarana é taturana, ambira, bicho-cabeludo, lagarta-de-fogo, suçuarana; bicho-lagarta que queima como fogo. Por sua excelente pontaria, reconhecido por todos por sua mira e valentia, logo o jagunço Riobaldo passa a se chamar Tatarana: Ah, eu, meu nome era Tatarana! (278) Tatarana foi o seu nome até se tornar chefe do bando, ocasião em que, rebatizado por Zé Bebelo, ganhou o nome Urutu Branco:
– “Mas, você é outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...”
O nome que ele me dava, era um nome, rebatismo desse nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto que logo gritavam, entusiasmados:
– “O Urutu-Branco! Ei, o Urutu Branco!...
Assim era que, na rudeza deles, eles tinham muita compreensão. Até porque mais não seria que, eu chefe, agora ainda me viessem e dissessem Riobaldo somente, ou aquele apelido apodo conome, que era de Tatarana. (279)

Como Urutu-Branco, Riobaldo é outro homem, tornou-se um chefe terrível, capaz de revirar o sertão até achar e matar o Hermógenes, o pactário traidor. Essa sua caçada (re)começa em outra travessia, a do Liso do Suçuarão, a mesma que, outrora, Medeiro Vaz, o Rei dos Gerais, tentou, sem êxito, realizar. O Liso do Suçuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. (27) A idéia de atravessar o Liso e capturar a mulher legal do Hermógenes, que morava desprotegida do marido do outro lado, nos fundões daquele deserto, foi de Diadorim, quando ainda Medeiro Vaz era o chefe. Nessa ocasião, tudo foi planejado e preparado: haviam esperado o fim das chuvas de março, para pegar o céu perfeito, com os campos ainda subindo verdes, ajuntado boa cavalaria, descansada numa fazenda próxima, e quantidade de comidas e mantimentos, em tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela fartura – as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. (33) E água, muita água nos bogós de couro e cabaças. Ainda três bons rastreadores para farejar o caminho e, no intuito de tudo prever, antes uma consulta à filha de ciganos, Ana Duzuza, dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente. (27) Com tudo planejado e preparado, visto, previsto e revisto, certificado e seguro, Medeiro Vaz não conseguiu atravessar o Liso, e teve que voltar com os seus homens do meio pra trás. Riobaldo, o Urutu-Branco, tempos depois, ao contrário de Medeiro Vaz, decide fazer sua travessia sem nada, preparativo nenhum, completamente entregue ao que acontecer.
Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo sem nada! Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chão aventesma – mas sem preparativos nenhum, nem cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropas de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos embaraços? (...) Eu não era o do certo: eu era o da sina! (322)

Ao contrário de se prevenir com o cálculo de um planejamento que pretende assegurar previamente de tudo, Riobaldo, fundado em sua coragem, disposto no ânimo que abre o sendo em seu todo, se doa inteiro à travessia, descobrindo a sorte de seu destino na conjuntura do acontecimento. E como gentileza gera gentileza, o raso daquele Liso abriu-se em flor, reciprocidade de doação, integridade do interesse. O que era? Que o raso não era tão terrível? Ou foi por graças que achamos todo o carecido nãostante no ir em rumos incertos, sem mesmo se percurar? (323) – O céu enuveou dando mormaço e refresco, acharam reses bravas para carnear e mais dois veados, gordos, e água, muita água para os homens e cavalos. Ali então tinha de tudo? Afiguro que tinha. (323)
Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, eu apalpei os cheios. (324) Riobaldo não era o do certo, mas o da sina. Jogado no acontecimento da situação, perpassando a ultrapassagem de sua conjuntura, aprende o que fazer na necessidade do que se abre, na descoberta do que ocorre; ele é jagunço sertanejo, o chefe Urutu-Branco, que sabe que mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Riobaldo é mestre e chefe porque sabe à medida que aprende, e manda à medida que obedece. O sertão se abre a quem está aberto à sua medida, disposto na coragem de ser de acordo com a sua vigência mais essencial, descobrindo o que o ente é na conjuntura do que está sendo. O acontecimento da conjuntura, a descoberta de seu sentido, é a medida que compreende o sertão, constitui a força de sua sabedoria e o poder de seu mando. Sei de mim? Cumpro. (385) Riobaldo, Tatarana, Urutu-Branco traçam a sina de um pobre menino do destino. GSV conta a estória de Riobaldo a fim de mostrar como o homem pode se realizar a partir da coragem de acolher, assumir e decidir o destino que se oferece. Dádiva da vida. Decisão que é graça, inocência, assunção do que se abre como necessário a uma presença própria e originária, descobrimento de ser, travessia do grande sertão.





[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. In: Ficção Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 46. Como todas as citações de GSV são desta edição, farei apenas referência, entre parênteses no corpo do texto, da página da obra.
[2] ROSA, João Guimarães e LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Ficção Completa, Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 49. Referência da página entre parênteses no corpo do texto com a indicação DGR.
[3] Além do bem e do mal, título de uma obra de Nietzsche citado em alemão por Guimarães Rosa. DGR, 45.
[4] HEIDEGGER, Martin. Da essência da verdade. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. Coleção Pensamento Humano. P. 101.

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